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Como Quebrar o Ciclo da Jornada de Trabalho Infinita
Forbes, a mais conceituada revista de negócios e economia do mundo.
Você acorda cedo e já encontra a caixa de entrada lotada de e-mails de trabalho. Ao longo do dia, as notificações te interrompem a cada dois minutos e, à noite, você ainda está tentando colocar tudo em dia.
Se isso soa familiar, você está preso no que a Microsoft chama de “jornada de trabalho infinita”: um ciclo aparentemente interminável em que o trabalho não tem começo nem fim claros.
Uma análise recente da big tech mostra que os profissionais enfrentam, em média, 275 interrupções por dia. Para 40% das pessoas, o dia já começa checando e-mails às 6h, e quase um terço delas volta à caixa de entrada às 22h.
Embora a inteligência artificial prometa automatizar tarefas rotineiras e agilizar fluxos de trabalho, a tecnologia sozinha não consegue resolver essa crise. Para mudar esse cenário, as organizações precisam adotar uma mudança cultural, com limites saudáveis, lideranças mais conscientes e foco no bem-estar.
Como romper com a “jornada de trabalho infinita”
Dia tomado por reuniões
O agendamento de reuniões já impõe desafios. Metade delas ocorre entre 9h e 11h e 13h e 15h, justamente nos períodos em que, segundo neurocientistas, estamos no auge da produtividade por conta do ritmo circadiano. Em vez de aproveitar esses momentos para trabalhos profundos, as empresas e equipes os preenchem com atividades colaborativas que dispersam o foco.
O ciclo do trabalho reativo
Os dados mostram que quase 60% das reuniões são convocadas de forma improvisada, sem convite prévio no calendário, e uma em cada dez é marcada de última hora. As edições de apresentações no PowerPoint aumentam 122% nos dez minutos anteriores às reuniões, indicando uma preparação de última hora generalizada. “É o equivalente profissional a ter que montar a bicicleta toda vez antes de pedalar”, observam os pesquisadores da Microsoft. “Gasta-se muita energia tentando organizar o caos antes que o trabalho de fato possa começar.”
Boom de trabalho fora do expediente
O estudo revela um aumento de 16% nas reuniões após as 20h em um ano, impulsionado por equipes distribuídas globalmente e modelos de trabalho mais flexíveis.
Hoje, um funcionário médio envia ou recebe 58 mensagens instantâneas fora do horário de trabalho, um crescimento de 15% em relação ao ano anterior.
Essa urgência se estende também aos fins de semana: quase 20% dos profissionais continuam trabalhando aos sábados e domingos, e mais de 5% retomam os e-mails no domingo à noite, gerando o que se conhece como “Sunday scaries” – aquela ansiedade típica do final do fim de semana.
Por que só a IA não resolve o problema
Expectativa x realidade
Muitas organizações apostam que a automação com o uso da IA otimiza tarefas repetitivas e traz ganhos em produtividade. A Microsoft destaca as chamadas “empresas de fronteira” (Frontier Firms), organizações que operam na vanguarda da inovação, e adoção tecnológica dentro de seus setores, nas quais a IA foi implementada com sucesso. Cerca de 70% dos funcionários dizem que a empresa prospera, contra apenas 37% globalmente.
Mas esse sucesso não vem apenas com a adoção de novas ferramentas. Essas empresas redesenham seus processos com base na IA.
Uma pesquisa da Universidade Cornell confirma essa visão: ao analisar mais de 7 mil profissionais do conhecimento, descobriu-se que as ferramentas de IA ajudaram a reduzir o tempo gasto com e-mails e documentos, mas tiveram pouco impacto em reuniões ou trabalhos colaborativos – que são justamente os principais vilões da jornada infinita.
Ou seja, sem repensar como as equipes se organizam e se comunicam, a IA sozinha não resolve uma cultura de trabalho sempre ativa.
A complexidade oculta da implementação de IA
Ser uma “empresa de fronteira” exige mais do que simplesmente adotar certas ferramentas. Segundo Jamie Teevan, cientista-chefe da Microsoft, criar comandos eficazes para a IA aumenta nossa carga metacognitiva. Ou seja, exige clareza de raciocínio sobre os passos desejados e habilidade para transformar conhecimento tácito em instruções explícitas.
“A IA traz ganhos reais de produtividade, mas não é suficiente”, destaca Teevan. “A velocidade dos negócios ainda supera a forma como trabalhamos hoje.”
A necessidade de repensar processos
Muitas empresas tratam a IA apenas como mais um software, em vez de enxergá-la como um catalisador para a transformação dos processos. Alexia Cambon, pesquisadora do Work Trend Index da Microsoft, sugere ver a IA como “um colega digital”, ao qual se pode delegar tarefas inteiras.
Das 31 mil empresas analisadas pela Microsoft, apenas 840 foram enquadradas como empresas de fronteira – em sua maioria, startups ou companhias nativas de tecnologia que já nasceram com seus processos moldados pela IA.
Como a liderança pode romper o ciclo da jornada infinita
A raiz do problema
A jornada infinita persiste porque líderes ainda não questionaram de forma profunda como o trabalho é estruturado e valorizado. O estudo mostra que, para que a adoção da IA funcione, é preciso mudar a gestão, e não apenas adotar novas ferramentas.
Mudança de mentalidade
Romper o ciclo exige que líderes parem de enxergar a IA como apenas uma ferramenta de produtividade e passem a repensar o trabalho desde a base, focando em resultados (e não em atividades) e desenhando processos a partir da capacidade humana, e não apenas tecnológica.
O que as “empresas de fronteira” fazem diferente
Essas organizações adotam práticas específicas de liderança, como:
- Focar em impacto, não em volume de tarefas: priorizar os 20% que geram 80% do valor.
- Redesenhar processos, não apenas automatizar: questionar se relatórios de status são realmente necessários.
- Usar a IA como agente autônomo: delegar fluxos inteiros à IA, com funcionários atuando como gestores dos sistemas.
- Adotar estruturas organizacionais mais horizontais: formar times por projeto, e não por função, permitindo agilidade e aproveitamento inteligente da IA.
O que as empresas podem fazer agora
Mesmo sem grandes investimentos em IA, é possível começar com mudanças práticas:
Redesenhe o tempo e o foco
- Proteja os horários de pico de produtividade: implemente períodos sem reuniões entre 9h–11h e 13h–15h para trabalhos focados.
- Reformule a cultura de reuniões: padronize critérios claros sobre quando reuniões são realmente necessárias, exigindo pauta, objetivos e limite de tempo.
- Crie blocos de foco ininterrupto: agende períodos para trabalho individual profundo, tratados como compromissos inadiáveis.
Estabeleça protocolos de comunicação
- Defina limites claros: agrupe tarefas semelhantes e determine horários específicos para responder e-mails, evitando interrupções constantes.
- Implemente períodos de recuperação: adote políticas como o “direito à desconexão” e evite o envio de mensagens fora do expediente.
- Comunique expectativas de resposta: esclareça prazos razoáveis para respostas, reduzindo a pressão por retornos imediatos.
Foque no que realmente importa
- Aplique o Princípio de Pareto (Regra 80/20): analise quais tarefas trazem mais valor e corte o que consome tempo sem gerar resultado.
- Elimine atividades de baixo impacto: revise reuniões, relatórios e processos trimestralmente para eliminar o que não agrega.
- Priorize iniciativas estratégicas: garanta tempo e recursos protegidos para projetos de alto impacto, sem deixá-los ser ofuscados por urgências menores.
Como escapar da jornada de trabalho infinita
As empresas que conseguirem sair dessa armadilha vão entender que o problema é organizacional, não tecnológico. Elas não usarão a IA apenas para acelerar um sistema quebrado, mas para reorganizar o trabalho com foco na capacidade humana e no propósito organizacional.
Os líderes que enxergarem essa diferença terão condições de criar ambientes que aproveitem ao máximo o potencial humano e da IA, rumo a uma performance sustentável e equilibrada.
A questão não é se a inteligência artificial vai mudar o trabalho, mas se os líderes vão aproveitar essa transformação para finalmente desenhar um trabalho que funcione para as pessoas.
*Caroline Castrillon é colaboradora da Forbes USA. Ela é mentora de liderança corporativa e ajuda mulheres a lidar com mudanças em suas carreiras.
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